segunda-feira, 12 de maio de 2008

UM BISPADO ATRIBULADO

* Ferrer Freitas

O segundo bispo de Oeiras foi o cearense dom Raimundo de Castro e Silva, um senhor baixinho e gordo, de rosto sanguíneo e risonho, que vinha exercendo o cargo de auxiliar da arquidiocese de Teresina, cujo titular era dom Severino Vieira de Melo, sem dúvida o principal responsável pela criação da diocese, em 1944. Naquele tempo, anos quarenta do século XX, Picos já despontava à frente de Oeiras como centro de economia bem mais sólida. Enquanto o então pároco, cônego Antônio Cardoso de Vasconcelos, saía de porta em porta, com devotados paroquianos, angariando fundos para aquele fim, comerciantes da vizinha cidade perguntaram ao arcebispo quanto ele queria para que a diocese fosse instalada ali, sem mais delongas. Dom Severino, que não era homem de fazer graça, rechaçou a idéia de imediato. O primeiro bispo, dom Francisco Expedito Lopes, depois assassinado por um padre, em Garanhuns, Pernambuco, tomou posse em 1949. Já dom Raimundo, de quem vamos falar, em março de 1955, na administração do prefeito Mário de Alencar Freitas, sendo governador do Piauí o General Jacob Manuel Gayoso e Almendra, que prestigiou sua posse.
Como é sabido, a política na primeira capital, com ou sem fé, sempre foi acirrada, com dois grupos formados, há mais de setenta anos, por descendentes de famílias tradicionais que tiveram membros ilustres como prefeitos e/ou deputados, todos homens dignos, frise-se. No bispado de dom Raimundo, estertores dos anos cinqüenta, pontificava à frente do Ginásio Municipal um padre moço, culto e orador extraordinário, não só sacro, Balduíno Barbosa de Deus, que estudara em Roma, onde foi ordenado. Paralelamente à direção do famoso educandário, passou a exercer o cargo de assistente eclesiástico do Círculo Operário, no que muitos viam uma forma de fazer política, suspeita não de todo infundada. Pois o jovem padre, idealista e voluntarioso como só, com seus arroubos oratórios passou a ser mal-visto pelos chefes políticos de então, que viam nele um perigo iminente ao status quo vigente. Que fizeram? Foram ao bondoso dom Raimundo e pediram sua cabeça, ou melhor, o cargo de diretor do ginásio, que, apesar de municipal, era administrado pela diocese. O pobre homem ficou sem saber o que fazer. Numa situação talvez como, “entre a cruz e a caldeirinha”, para usar uma expressão com elementos compatíveis com a narrativa. Chamou Balduíno e pediu-lhe que se licenciasse, até ulterior deliberação. Não foi atendido. Pra complicar, nós, os alunos, indignados, resolvemos não só parar o colégio, mas depredar o prédio. Foi um deus-nos-acuda! A coisa ficou tão séria que o bispo, o menos culpado de tudo (alguns acusam-no de tíbio), viu-se obrigado a mudar-se para Picos, de onde renunciou ao governo da diocese. Chegou ainda a ser alvo de chacotas de contumazes gozadores, como foi o caso da inventada envolvendo Valdivino, um néscio de tiradas interessantes, dando-o como meio devagar, pra não dizer outra coisa.
Passa o tempo, uns vinte anos talvez, eu, de férias, reencontro-me com dom Raimundo, já velhinho, na colônia do SESC de Iparana, Ceará, não muito distante de Fortaleza. Mesmo estando ali para descansar, não deixava de celebrar a missa na capela da colônia. Numa das vezes, presente, aproximei-me dele e, para minha surpresa, reconheceu-me. Tinha sido um dos seus acólitos em Oeiras, sobretudo para a missa diária, bem cedinho, na capela do palácio, o que me credenciava a compartilhar, com sua excelência reverendíssima, na mesma mesa, de um café supimpa. Regalava-me a não mais poder. Tratou-me com carinho, mas, em nenhum momento, referiu-se a Oeiras. A impressão que senti era a de que queria esquecer, para sempre, um tempo em que não foi feliz. Beijei-lhe o anel e despedi-me, com vontade de lhe pedir desculpas, talvez por toda uma cidade .

(*) Ferrer Freitas é vice-presidente do Instituto Histórico de Oeiras

Um comentário:

Israell - bobi disse...

Pobre Dom Raimudo.Vítima inocente das mazelas (políticas) oeirenses.Ótimo texto,Ferrer.